Mais uma vez, as emendas parlamentares.
Retirem as crianças da sala. O que se segue é imoral, um escárnio. O rei ficou nu e a cena é estarrecedora.
Recomendamos a nossos leitores uma revisita à NL 31, de 18 de dezembro de 2024, quando sugerimos olhos atentos para as votações de última hora no Congresso neste virar de exercício prenunciando absurdos em gestação. Para surpresa de ninguém eles aconteceram. Entre explicitação e ocultações, os fatos se sucederam e invadirão 2025. Trata-se de um caso de polícia, tendo por vítima o contribuinte.
Vemo-nos impelidos a iniciar conferindo continuidade ao noticiário, com acréscimos à análise apresentada por ocasião da NL precedente.
Em 3 de dezembro passado, o STF autorizou o pagamento das emendas parlamentares, que estava suspenso por falta de transparência e rastreabilidade da autoria e destinação dos recursos. O desbloqueio aconteceu na sequência das eleições municipais e em simultaneidade com as discussões sobre disposições que regem as emendas parlamentares, sobre o pacote de corte de gastos apresentado pelo governo federal, regulamentação da reforma tributária, atendimento às metas fiscais, tendo o Congresso vinculado a liberação das emendas à votação das medidas em pauta. Isso tudo precedendo as sucessões presidenciais na Câmara e Senado. Naquela ocasião, o relator impôs aos parlamentares exigências para a liberação de emendas, tendo expressado a obrigatoriedade de adoção de procedimentos que assegurassem a transparência e a rastreabilidade da origem à aplicação dos recursos públicos. O relator teceu críticas ao modelo de emendas adotado no País: “… existem países presidencialistas, parlamentaristas, semipresidencialistas e o Brasil, com um sistema de governo absolutamente singular no concerto das Nações”. Apontou ser precoce afirmar que houve crimes na distribuição e na execução sem critérios das emendas, mas que “é de clareza solar que jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público, em tão poucos anos.” O ministro relator fez um desagravo às emendas parlamentares com montantes de recursos cada vez maiores: “certamente, nenhuma despesa no Brasil teve similar trajetória em desfavor da responsabilidade fiscal” e apontou que “existe apenas um Orçamento Público da União e que emendas parlamentares devem estar submetidas às mesmas regras e restrições impostas às programações discricionárias do governo”. Foi ainda assertivo ao afirmar que “o projeto das emendas, aprovado pela Câmara não cumpre os requisitos de transparência exigidos e ainda garante R$ 50,5 bilhões em recursos nas mãos dos parlamentares em 2025 com garantia de crescimento real de 2,5% ao ano para as emendas impositivas e um total R$ 11,5 bilhões para as de comissão, herdeiras do orçamento secreto, com correção pela inflação. Fora os gastos obrigatórios e carimbados, nenhuma despesa pública tem essas garantias.
O jornal O Estado de São Paulo (OESP) apresenta o cronológico desse embate: “A definição das regras de transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares foi fruto de uma queda de braço entre o Congresso e o STF, com participação do governo federal. Reuniões foram realizadas entre os presidentes da Câmara e do Senado com o ministro relator, para um acordo que impusesse regras ao dispositivo. Em 20 de agosto, com a participação dos três poderes, ficou definido que as emendas parlamentares deveriam respeitar critérios de transparência, rastreabilidade e correção. Foram definidas regras mais específicas para as emendas pix e de bancada. Foi neste encontro que o governo e o Congresso firmaram acordo para limitar o crescimento dos recursos para as emendas à receita corrente líquida. Em outubro foi acordado que o Congresso e o governo federal finalizariam o PLC, a partir do que, o STF avaliaria a continuidade do processo. Em dezembro, lei aprovada na Câmara, o ministro relator fez os apontamentos sobre as lacunas presentes no texto aprovado. Integrantes da base do governo manifestaram preocupação, condicionando a solução para o imbróglio para o avanço das votações de matérias orçamentárias no Congresso.“
O mesmo periódico, em 8 de dezembro, sob o título “Disfuncional, ilegal e impróprio”, assim se expressou: “Apesar de boa medida, freio do STF ao mau uso das emendas parlamentares pelo Congresso reafirma distúrbio institucional com ares de normalidade que pode significar riscos à democracia”.
Em continuidade, o contencioso se viu focado nas emendas de comissão. Detalhes foram aos poucos sendo parcialmente revelados, para desespero do contribuinte.
Emenda de comissão, de natureza não impositiva, não consta na Constituição, nem em leis específicas, tendo passado a fazer parte do orçamento, R$ 11,2 bilhões, retro citados para 2024. A liberação desses valores teria feito parte de acordo entre Legislativo e Executivo para votação das matérias deixadas “usualmente” para o final do ano.
A Lei Orçamentária Anual contempla 10 emendas aprovadas em 2023 por comissões permanentes para execução em 2024, cada uma destinada a uma ação, sem definição clara do objeto e do destinatário final dos recursos. Em 2024 os presidentes das comissões encaminharam ofícios a ministérios para definir como seriam divididos os montantes, quais municípios seriam beneficiados e onde o dinheiro seria aplicado. Ou seja, as 10 emendas se desdobrariam, seguindo as indicações encaminhadas pelos presidentes dos colegiados, seguindo pedido de membros das comissões. Resultaram 5.449 indicações.
O primeiro bloqueio determinado pelo ministro relator abarcando as emendas de comissão havia sido revisto em 3 de dezembro. O magistrado decidira que o pagamento dos recursos indicados por comissões do Congresso poderia ser retomado, desde que seguissem alguns critérios. O principal deles seria a indicação explícita do padrinho da emenda, o que não ocorria até então, já que os colegiados haviam encaminhado ofícios ao Executivo indicando de forma coletiva onde os recursos deveriam ser aplicados, sem individualização.
Em 12 de dezembro, o presidente da Câmara determinou que nenhuma das comissões funcionaria durante o final do mês, como forma de demonstrar compromisso da Casa com a agenda econômica. Puxada de tapete? Nesse mesmo dia uma “conta” chegou ao Palácio do Planalto, totalizando as 5 449 indicações para pagamento de 4,2 bilhões, parte residual das emendas de comissões da Câmara. O ofício, assinado por 17 dentre 19 líderes, só não foi referendado pelas líderes do Novo, Adriana Ventura, e da federação PSOL-Rede, Erika Hilton. Ao leitor sugere-se apor na porta da geladeira o nome dos 17 signatários para o devido veto, pelo voto, nas eleições de 2026. A ressaltar que ideologias foram deixadas de lado. Unidos, nossos representantes dividem esse naco do bolo. De uma forma ou de outra todos vendem seus votos. Às favas a moralidade!

O PSOL recorreu, então, ao STF, argumentando que a medida tomada pela Câmara violou as regras estabelecidas por decisões anteriores, questionando sobre a constitucionalidade associada, enquanto três deputados de outros partidos denunciavam na tribuna da Câmara as irregularidades em andamento. Pelas regras vigentes, cabe a cada comissão permanente da Câmara ou do Senado chegar a um acordo sobre essas emendas, com registro das decisões em ata específica. Segundo a “provocação” protocolada, ocorreram alterações de última hora nas disposições das comissões, o que não poderia ter sido feito sem aprovação das respectivas comissões. Os denunciantes dizem que os colegiados foram impedidos de deliberar sobre o conteúdo final em razão do cancelamento das reuniões dos colegiados, feita pela presidência da Câmara, no mesmo dia do envio do ofício ao Planalto.
Sim, haviam puxado o tapete. Em adição, o critério de transparência e rastreabilidade não se fez observar, caracterizando a inconstitucionalidade do dispositivo.
A Advocacia da Câmara discordou dos argumentos contrários ao ofício das emendas, afirmando que as decisões do ministro relator não determinam que as comissões votem as indicações das emendas de comissão até o exercício de 2024. “Basta que tenham aprovado suas proposições durante a elaboração da Lei Orçamentária Anual – o que ocorreu – desde que haja a identificação de um solicitante. Segundo a decisão do Tribunal, deve-se apenas observar a necessidade de um solicitante, suprida pelo ofício geral dos senhores líderes”. Seria como se as emendas não fossem de comissão, mas de lideranças partidárias. A Advocacia da Casa arguiu ainda que o procedimento adotado para a emissão do ofício foi chancelado por quatro ministérios, além da Advocacia-Geral da União e da Secretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil. Ou seja, explicitou conivência do Executivo. A Câmara, numa tentativa de atender ao questionamento do STF, argumentou que os 17 líderes partidários deveriam ser entendidos como “solicitantes” do resíduo de R$ 4,2 bilhões bloqueados. O argumento foi de que o ofício encaminhado ao Executivo ratificou indicações feitas pelas comissões. Mas isso não se sustentou, pois uma parte significativa dos recursos descritos no ofício sofreu alteração de destinatário. Ao todo, foram 119 novas indicações inseridas no ofício, que totalizaram R$ 201 milhões. Desses, 37% seriam destinadas a Alagoas, Estado do presidente da Câmara, no montante de R$ 74 milhões.
O ministro relator suspendeu mais uma vez, em 23 de dezembro, o pagamento dos R$ 4,2 bilhões e, na manhã do dia 27 de dezembro, deu um prazo para a Câmara esclarecer, ainda no mesmo dia, a destinação das emendas. Falta de transparência e de rastreabilidade se mantinham presentes. Por que o segredo subjacente? O velhinho de São José sugere nesse caso o mecanismo de cash back. O anonimato, a falta de transparência e de rastreabilidade são digitais presentes. A Câmara, em resposta, pouco acrescentou, tendo ainda arguido o porquê dos questionamentos ao STF terem poupado o Senado. Isso tudo lembra as atas irreveláveis das eleições presidenciais em país vizinho.
O Senado, ao contrário da Câmara, não vinha enfrentando as mesmas dificuldades. Em 18 de dezembro, a câmara alta também havia encaminhado ao Palácio do Planalto sua lista de emendas para empenho. Ao todo seriam R$ 358 milhões, saldo provável dos R$ 2,7 bilhões alocados no orçamento de 2024, subdivididos em 307 indicações de emendas de comissões, outra lista secreta. Diferentemente da Câmara, o Senado informou que os líderes partidários eram os padrinhos de cada uma das indicações. De novo emenda de comissão ou de líderes? O líder do PSD, partido do presidente do Senado, foi o que mais teve emendas indicadas, R$ 111 milhões, equivalentes a 31% dos pleitos. Em seguida segue-se o MDB, representado pelo senador Eduardo Braga, relator da regulamentação da Reforma Tributária, com R$ 72 milhões. Minas Gerais, Estado da presidência do Senado, aparece como o segundo maior beneficiado, com 67 emendas, num total de R$ 44 milhões. O mais agraciado foi a Paraíba, Estado do senador Hugo Motta, candidato à sucessão na presidência da câmara alta, com alocação de R$ 47 milhões. Mato Grosso teve uma única indicação de R$ 600 mil. Alguns Estados não tiveram indicações. Equidade presente?
Para completar a balbúrdia o Executivo começou a verbalizar que dependia da liberação de pelo menos R$ 370 milhões, a serem empenhados ainda no exercício para cumprimento do dispositivo constitucional que obriga a destinação mínima de 15% do orçamento público líquido para a área de saúde. Em novo despacho, nos estertores do ano, o ministro relator acatou pedido específico da AGU e liberou esse montante, parte a título das emendas de comissão. Deixou claro em despacho, entretanto, a nulidade dos ofícios encaminhados ao Executivo pelo Legislativo e impôs condições para que Câmara e Senado assegurem a integridade da operação, até 31 de março de 2025.
Mas a história continua. O G1 publicou em 26 de dezembro o resultado de auditoria em transferências de recursos federais tendo encontrado dezenas de milhões de reais em parcerias feitas com organizações dirigidas por parentes de parlamentares e funcionários do governo federal, além de indícios de direcionamento na contratação de fornecedores e de pessoal. O relatório também aponta que um terço das organizações contratadas sequer tinham funcionários registrados à época. Os auditores analisaram os documentos de quase 11 mil parcerias, no período 2017 a 2022, envolvendo transferências de R$ 13,34 bilhões, parte direcionada para organizações dirigidas por parentes de parlamentares ou de funcionários do governo federal.
Neste 3 de janeiro, o G1 noticia ainda que o ministro relator vetou repasses para 13 ONG´s e impôs um prazo curto para que outras 9 cumpram plenamente os requisitos de transparência. A auditoria foi realizada igualmente pelo CGU em 26 entidades que mais receberam recursos provenientes de emendas, num universo de 600. A destacar que existem ONG´s sérias. Retomaremos essa pauta em breve.
Em resumo, tratando-se das emendas parlamentares orçadas para 2024, o Executivo deixou de empenhar cerca de R$ 4,2 bilhões, talvez um pouco mais, parte dos quase R$ 50 bilhões aprovados. Muita gente deixou de receber o valor da venda dos respectivos votos, substituído por votos de um Infeliz Ano Novo. Outrossim, uma plêiade de irregularidades tem vindo à tona.
Apensamos, em 18 de dezembro – NL 31 – nossa análise, ora ratificada.
O Congresso legisla mal e quase sempre em prol de interesses dos parlamentares. Usa e abusa do recurso público. O STF, arguido, interfere impondo moralidade, transparência e rastreabilidade. O Congresso reage, insistindo em deixar lacunas nada republicanas. O STF intervém bloqueando os repasses, a velha técnica de pisar no tubo de oxigênio. O Congresso reage condicionando a liberação do retido à votação de matérias de interesse público. Chantagens parte a parte? O ministro relator se apresenta até cauteloso ao registrar que “é precoce afirmar” que houve crimes na distribuição e na execução das emendas sem critérios. Inquéritos foram abertos o que, como dizem, “balançou Bangu” nos meandros do Legislativo e do Executivo. Quem conhece os caminhos tortuosos da política, em especial, no âmbito municipal, fica esperançoso de que o “precoce” signifique aprofundamento de investigações criminais. Ato contínuo, a Polícia Federal prendeu 15 suspeitos de desvio de dinheiro de emendas, alocados em obras superfaturadas ou sequer existentes. De fato, secretas. Abordado, um vereador arremessou uma sacola de dinheiro janela afora. Tragicômico?
De outra parte, há muitas vozes batendo no STF por interferência indevida entre poderes. Em nome da constitucionalidade, abomina-se o STF por apontar a antagônica praticada. Antes de tudo a inconstitucionalidade está em leis que permitem a não transparência e a não rastreabilidade, garantido o anonimato na prática de atos nada republicanos. Talvez o STF devesse ficar nisso. O Legislativo que melhorasse a Lei. De outra parte, o Congresso não corrige, insiste. O Executivo, chantageado, entra no jogo pedindo que a Corte reveja decisões tomadas. Diante da recusa, emite uma portaria dando tempo ao Parlamento para que apresente as informações sobre os recursos liberados e em liberação. Dá-se sempre um jeitinho.
A roubalheira, acobertada pelo anonimato e regulamentada pela legislação instituída, vê-se explícita. Em nome de quê ou de quem? E o relator do orçamento afirma sem pudores que a liberação das emendas acalmaria os ânimos. Cento e oitenta e seis bilhões de reais em meia década. Outros duzentos e cinquenta bilhões assegurados para os próximos cinco anos!
Não dá para acreditar. Tudo errado, distorcido, imoral, inconstitucional, lembrando que essa pendenga sequer começou. Não é o Brasil que queremos! Quem sabe agora, por ocasião da aprovação do orçamento para 2025, a ficha caia e a moralidade seja restabelecida. Sonhar com o Resgate da Esperança é um direito do contribuinte.
De outra parte, o voto em 2026 poderá dar conta do que se faz necessário. Os pessimistas, os negativistas e os beneficiados pelo status quo dirão que não há como pôr ordem no quartel de Abrantes. É preciso expurgar do Legislativo os Ali Babás e seus 400 seguidores.